A arte de viver em mundos distintos ao mesmo tempo, tentando conhecer a si mesmo
Publicado em : 07/02/2020
A arte de viver em mundos distintos ao mesmo tempo, tentando conhecer a si mesmo
por André Mols*
Pelo menos em um aspecto fundamental os seres humanos são diferentes do resto da vida na Terra: não vivemos no mundo diretamente, como as outras espécies parecem viver. Em vez disso, vemos o mundo inteiro por meio de estruturas de ideias e valores. Nós não simplesmente existimos no mundo: temos teorias e ideias sobre ele que afetam o que fazemos e o modo como vemos a nós mesmos e aos outros. Essas capacidades de imaginação e criatividade estão entre as poucas coisas que nos distinguem do resto da vida na Terra, mas elas fazem toda a diferença.
À medida que crescem, as crianças aprendem, como todos nós, que elas vivem não apenas em um mundo, mas em dois. Como observamos antes, há o mundo que existe independentemente de você existir: o das outras pessoas, dos objetos e dos eventos materiais. Também há o mundo que existe apenas porque você existe: o da sua consciência privada. Um dos desafios de estar vivo é interpretar ambos os mundos e a relação entre eles [1].
Conseguir atingir o objetivo proposto pelo professor Ken Robinson é um desafio e tanto. Na verdade, é bem difícil. Ele sugere que sejamos capazes de entender a relação entre o Nosso mundo E o mundo do Outro. O processo de descoberta é muito desafiador, os motivos são variados e residem no âmago de cada um de nós, indivíduos contraditórios que somos. Paradoxalmente, apesar de sermos indivisíveis, queremos como nunca o contato com a totalidade (aparente) da humanidade, não só com algumas de suas partes. Isso seria em tese possível através do WWC – World Wide Computer – para usar um termo popularizado por Nicholas Carr. No entanto, esse contato total, que ainda assim será sempre relativo, tem um preço que penso ser muito alto – a perda da individualidade, do ser Eu autêntico, ainda que parcialmente repetindo o Outro. O ideal seria que a máxima “Na vida nada se cria, tudo se copia...” não passasse de um aforismo...
Naturalmente, a personalidade de cada um, constituída por sua vez também no contato consigo mesmo e com o Outro, apresenta-se como parte importante nas decisões que se referem à disposição para entender a relação possível entre o mundo das outras pessoas e o mundo da consciência privada de cada um de nós. Mais uma vez refletimos sobre como podemos de maneira eficaz e saudável preservar a nossa privacidade ao mesmo tempo em que tentamos nos relacionar com os outros mundos à nossa volta. Certamente, um destes importantes mundos é a escola.
Em uma escola, toda essa humanidade aflora, e este aflorar por vezes gera angústia, o que é perfeitamente natural se estamos a tratar de gente. A partir deste raciocínio, havemos de concluir que as pessoas são, de fato, únicas, que não são constituídas da mesma maneira, que possuem interesses e habilidades muito específicos, que merecem incentivo e descoberta. Neste sentido, é imprescindível que o ambiente seja favorável, e que as pessoas estejam dispostas a olhar o processo de aprendizagem de maneira ampla, para além da memorização – que é também necessária e tem seu lugar garantido neste processo.
Ao escrever este texto, tenho apenas um objetivo – reafirmar a importância do respeito à individualidade e à equidade. Qual a nossa reação quando nos deparamos com alguém que não gosta de nosso prato favorito? A condenamos ao exílio ou algo pior? Se encontramos alguém que torce por um time de futebol diferente do nosso favorito a execramos? Se encontramos alguém que tem opinião política diversa somos os primeiros a reclamar? Se encontramos um jovem que quer estudar algo que achamos menos importante o chamamos de fracassado? Penso não ser por aí...
Em uma escola, cabe a nós reconhecer os talentos de cada estudante sob nossa responsabilidade. Se buscamos colocá-los todos na mesma fôrma, corremos o risco de enterrar artistas, cientistas, e tantos outros profissionais que poderiam brilhar em um futuro muito mais próximo do que imaginamos. O mundo da nossa consciência privada precisa ser preparado também para respeitar o outro. Sem isso, nos aproximamos perigosamente do conceito de linha de produção de Another Brick In The Wall, desprovido de brilho no olhar.
É imperioso que os estudantes tenham a possibilidade de explorar seu espectro de capacidades e sensibilidades na escola, segundo o professor Robinson. Concordo com ele. A questão, dessa maneira, não deve girar entre ensino tradicional ou progressista – esse discurso é muitas vezes até cansativo. Segundo o professor Robinson, nossos quatro papeis principais na escola são: motivar, possibilitar, cobrar e empoderar. Motivar significa ensinar mais do que conteúdos – significa ensinar estudantes. Possibilitar significa promover um processo constante e ininterrupto de reajuste de rota. Cobrar significa ter altas expectativas, e não simplesmente condenar ao fracasso baseando-se em recortes mal esclarecidos. Empoderar significa transferir o “poder” de si mesmo para o outro, viabilizando autonomia e protagonismo.
Segundo Robinson, o objetivo central da educação é preparar os jovens para a vida após a escola. A questão é o nosso entendimento do que é esta vida fora da escola. Se, segundo ele, um dos grandes desafios de se estar vivo é interpretar a relação entre o nosso mundo e o mundo de cada um dos outros, a questão norteadora em nosso projeto de vida, que devemos fazer todos a nós mesmos, deveria ser, antes de mais nada: quem somos nós?
[1] ROBINSON, K. Escolas criativas: a revolução que está transformando a educação. Porto Alegre: Penso, 2019, p.80.
*André Mols é Gestor de Desenvolvimento e Currículo da Escola Interamérica - Unidades I e II e músico.